À Constituição de 1988 são devidos 26 anos de estabilidade democrática, o mais extenso período desde 1946.
É preciso festejá-los, pois é nos momentos de segurança democrática que mais avança o processo político, e com ele se fortalecem as organizações sindicais e populares.
Temos todos os motivos (e comungamos de todos os deveres) para defender a legalidade democrática, pois, sempre que ela é rompida são os movimentos populares, os trabalhadores, os camponeses e os pobres que pagam o alto preço da fatura, seja por força das restrições impostas ao exercício da política em geral e do sindicalismo de forma específica, seja pela prática de restrições (também chamadas de ‘flexibilização’) aos direitos trabalhistas, no que, aliás já se empenha o presidente interino porque esta é, entre nós, a história recorrente dos governantes de direita.
Por isso devemos combater o governo da ursurpação, pois pretende impor ao País – trata-se de projeto já em curso – um retrocesso de décadas, expresso na sua proposta para a economia, que visa ao desmonte do Estado, o aprofundamento da desnacionalização, a desvinculação do salário mínimo, a reforma da previdência e a precarização das relações trabalhistas, sob o pomposo nome de flexibilização.
A defesa da legalidade é, hoje como sempre, uma cara bandeira das esquerdas brasileiras: ela se faz agora de par com a denúncia dos atentados que se perpetram contra a ordem democrático-constitucional, e as ofensas partem do Congresso, do Executivo e, até, do Poder Judiciário, principalmente do Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é a de guardiã da Constituição.
Pois essa Corte faz tábula rasa do seu Art. 5º, o que trata dos direitos e garantias individuais e coletivos.
Em todos os momentos de domínio político pelo conservadorismo, e estamos em face de sua recidiva (que promete ser a mais profunda nos últimos 20 anos e que se anuncia contundente e longeva), as vítimas foram os movimentos populares, e em todos esses momentos a resistência democrática foi a bandeira das esquerdas brasileiras.
Já está o governo interino investindo contra o movimento sindical, contra a previdência social e contra o movimento estudantil.
Mas não é esse o único abismo a nos separar: aqui, os avanços da democracia e da participação, estiveram sempre apoiadas no movimento popular e na legalidade, e, de certa forma, sempre atendendo a suas demandas (como, por exemplo em 1961, com a defesa da ordem constitucional e em nome dela a posse do vice-presidente João Goulart), enquanto a instauração do Estado autoritário (como o de 1937 e o de 1964) dependeu sempre do esbulho, da fraude, do golpe, ainda quando perpetrado sob o manto de um legalismo formal.
De igual intenta consagrar-se o conservadorismo autoritário do governo interino, fraudulento em sua gênese, que promete consolidar-se como poder de fato quanto mais se distancia da expectativa de poder legítimo, meta que se lhe afigura como irrelevante.
Tanto a Constituição ‘cidadã’ do Dr. Ulysses, quanto o regime de 1946, nasceram após a derrota de duas ditaduras (o ‘Estado Novo’ de Vargas e a ditadura militar implantada em 1964).
A queda do ‘Estado Novo’, em 1945, coincidia – como um reflexo – com a demolição do nazi-fascismo e a vitória dos exércitos aliados, cujos feitos abriram caminho para o crescimento no Brasil e em todo o mundo dos movimentos populares, trabalhistas e comunistas, antes reprimidos pela ditadura.
As Constituintes de 1946 e 1988 nasceram, ambas, do pleito popular e como fruto de pactos sociais.
Somos beneficiários desses ventos.
Para não ir mais longe, a Constituinte de 1988 foi convocada e reuniu-se na cimeira de ampla ação popular e de massas, como o grande fruto da luta pela Anistia e contra a tortura, como fruto do pleito pelas Diretas-já, da implosão do Colégio eleitoral e da eleição de Tancredo Neves.
A ascensão do movimento popular – e com ele o crescimento das organizações de esquerda – era o desdobramento da luta contra a ditadura, reunindo em um mesmo palanque todas as forças populares e democráticas do país, e mesmo a dissidência liberal do regime militar.
Contra essa base legitimadora investe o atual Congresso.
A Constituição de 1988 foi o fruto de um pacto que refletia a correlação de forças do momento. Se esse pacto na medida em que possibilitou a Constituinte também condicionou a redemocratização, limitando seus avanços sociais e políticos, verificamos, passados quase 30 anos, que há muito o que comemorar, a começar pela estabilidade democrática, a vida política sem abalos institucionais, livrando-nos daquela insegurança que caracterizara o regime de 46-64, pontilhado de golpes de Estado, insurreições militares, crises políticas, mudança de sistema de governo, até desembocar em uma ditadura militar que revogou a ordem constitucional democrática, substituindo-a pela violência dos Atos Institucionais.
Uma das características da atual ordem constitucional é sua capacidade de absorver golpes enquanto permanece incompetente para sair das cordas a que foi levada pelo avanço do golpismo de direita, que se objetiva na usurpação do mandato da presidente legitimamente eleita.
Esse golpismo fere o princípio pétreo da soberania do voto. Esse golpismo se manifesta quando o governo interino impõe ao país um programa econômico que implica radical guinada liberal, sem qualquer respaldo social, sem qualquer consulta ou discussão ou aprovação em processo eleitoral.
Ele se desvela quando o Congresso, sob o comando do Planalto de hoje, e dando sequência ao golpe parlamentar aberto em 17 de abril pela Câmara dos Deputados, inicia a desconstrução da ordem constitucional de 1988, atentando contra o projeto de Estado fundado no desenvolvimento com inclusão social, ponto de partida inafastável para o combate à pobreza, à fome e à desigualdade social.
Foi em torno desse projeto que a sociedade se manifestou respaldando a Constituinte.
"A Constituição não cabe no Orçamento", dizem agora os arautos desse liberalismo a fórceps, para quem a ciranda financeira deve ser preservada a todo custo, como preservada deve ser a identidade dos credores que drenam os recursos da nação. "Sem reforma da Constituição não há possibilidade de equacionar o pagamento da dívida", diz o ex-presidente do Banco de Boston, agora nosso Czar das finanças.
Campeão de impopularidade e motivo de rejeição crescentes, quais são as bases sociais nas quais se apoia o nominalmente chefe do governo antipovo?
Na verdade, Michel Temer ocupa espaço no Palácio do Planalto pela contingência de encontrar-se na vice-presidência da República e ser desprovido daquele caráter que notabilizou o probo e honrado José Alencar.
O Poder foi tomado de assalto pelos interesses vinculados ao imperialismo e ao grande capital nacional, a ele vinculado ou não, tendo à frente o capital rentista e o agronegócio, com a ajuda da bancada pentecostal (89 deputados), em um Congresso ainda hoje liderado pelo deputado-réu Eduardo Cunha (o que por si diz tudo de sua qualidade ética) e assim apto ao golpe, com um Poder Judiciário que ao golpe se associou.
Desse projeto Temer é o instrumento necessário, mas o núcleo duro do poder está longe de suas mãos, exercido que é pela dupla Meirelles-Serra, que, nesse governo, desempenham o mesmo e crucial papel que em 1954, quando assumiu Café Filho, desempenharam Eugênio Gudin e Vicente Rao, e que na primeira fase da ditadura, a mais entreguista, sob Castello Branco, exerceu a dupla Campos-Bulhões.
A História não se repete, por óbvio, mas no Brasil ela é recorrente.
Assumindo o Poder em agosto de 1964, a UDN (que com seus tentáculos militares e a associação com a grande mídia, levara Vargas à deposição e em seguida ao suicídio), não teve condições de evitar as eleições de 1955 e muito menos as eleições de Juscelino Kubitscheck e João Goulart, que, por circunstâncias históricas, representavam, principalmente para o lacerdismo, o retorno do varguismo.
Tentaram o golpe – o núcleo duro do Catete e o lacerdismo – e, derrotados, tiveram de resignar-se à vitória da legalidade.
Em 1961, não podendo de novo impedir a posse de Jango, impuseram o parlamentarismo, com o inefável e decidido apoio do Congresso nacional. Os militares de 1964 encontraram convocadas as eleições de 1965 para os governos estaduais, e as mantiveram, e as perderam. A resposta veio a galope com o fim das eleições diretas.
Hoje, qualquer alternativa serve à direita, menos eleições, a não ser eleições de cartas marcadas, ou sem adversário, daí, como prévia condição, a tentativa de aniquilamento do PT e a destruição moral e política de Lula, em que se empenha a articulação reacionária.