Golpe e resistência
Na sua inexcedível capacidade de superar a fantasia, a política rasteira nos transportou, no domingo 17/04, para o imaginário de Macondo, promovendo o encontro do realismo fantástico com o espírito de Macunaíma, no que ele tem de moralmente lássido e grotesco. A sociedade, preocupada com os destinos de seu país, postou-se diante da TV para saber como votavam seus representantes chamados a decidir o destino do mandato da presidente da República. Mas, no lugar de um espetáculo cívico, presenciou uma ópera bufa. Por horas, assistiu incrédula e – certamente constrangida – ao desfilar tragicômico de personagens ridículos que se sucediam diante as câmeras. Assim, o Brasil conheceu a Câmara e seus deputados. Aplausos para as exceções.
Não se ouviu dos adeptos do SIM um só conceito político ou jurídico, um só desenvolvimento de raciocínio adulto, lógico, mas, tão-só, um desalentador desfilar de sandices e pieguices: referências domésticas, familiares, expressões de uma religiosidade primitiva…. Absoluta ausência de senso e decoro. Ao fundo, a algaravia de mercado persa, incompatível com uma Casa de leis. Mestre de cerimônia do espetáculo burlesco, reinou impávida essa figura abjeta representada pelo ainda presidente da Câmara, deputado-réu, materialização de Frank Underwood, que salta da série estadunidense e dos esgotos do Capitólio para conviver conosco.
O espetáculo grotesco oferecido pela Câmara Federal expõe à saciedade quão imperiosa é a reforma, profunda, do sistema eleitoral que a produziu. Mas como esperar que nossos parlamentares livrem a legislação das mazelas e vícios que garantem a reprodução de seus mandatos? Pois essa é a Câmara que abriu o processo de impeachment. Uma Casa de maioria hegemonizada por um agrupamento de acusados, presidida por um parlamentar consabidamente desonesto, comandando um processo de cassação de uma presidente consabidamente honesta. E se esse processo tiver curso no Senado Federal, há risco de vermos uma presidente legitimamente eleita por 54,5 milhões de votos ser substituída por um vice perjuro, sem um só voto!
Pobre política brasileira.
A crise da democracia representativa brasileira está exposta à luz do sol e pode atingir o paroxismo, que certamente tomará as vestes de crise institucional, no iminente encontro da desmoralização parlamentar com o exercício da presidência por um vice sem legitimidade. Longe de promover o encontro da Nação com seu destino, de liderar a distensão política a caminho da união nacional, o hipotético governo será instrumento de desagregação, agravando a até há pouco escamoteada luta de classes, que será aprofundada, independentemente do que fizerem os movimentos sociais, em função das características da crise e do remédio prometido pelo receituário neoliberal e exigido pelos financiadores da caríssima campanha pró-impeachment: menos investimentos, mais superávit primário e menos compensações sociais, flexibilização do trabalho e reforma da previdência (contra os aposentados), mais privatização, mais recessão, mais desemprego. E, como cereja do bolo, a entrega do Pré-Sal às multinacionais do petróleo. Ao fim e ao cabo, mais crise social.
Aliás, deve-se à direita o desmanche das ilusões de conciliação de classe que por tanto tempo encantaram lideranças petistas, imobilizando-as diante da luta ideológica, a que renunciaram, como renunciaram seus governos às reformas que poderiam, sem ferir o sistema, alterar a estrutura do Estado e promover uma correlação de forças favorável às massas. Renunciaram a uma reforma tributária progressiva, renunciaram à reforma política (daí a Câmara de hoje, que será sucedida por outra ainda pior), à democratização do meios de comunicação de massas, à reforma do Poder Judiciário, à reforma agrária, à reforma do ensino militar, para citar as mais ingentes. Um governo de origem popular, recém-saído de uma refrega eleitoral para cujo desfecho a esquerda foi decisiva, opta pelos entendimentos de cúpula que cevaram as forças que o trairiam na primeira oportunidade. Para agradar o ‘mercado’ opta por um reajuste fiscal recessivo, afasta-se de suas bases e não conquista a classe dominante, para quem acenava. Essa continuou no comando do golpe, do qual o 17 de abril não é nem o ponto de partida nem o ponto de chegada.
O processo histórico, porém, é contumaz em pregar peças, e assim ficamos a dever à direita brasileira a reaglutinação das esquerdas e do movimento social, e a virtual unidade, na ação, do movimento sindical. Foi a ameaça captura do Estado, sem voto, para alterar a agenda de prioridades, projeto da classe dominante brasileira, que reconciliou o governo com as massas, quando essas descobriram que o golpe era mesmo contra elas, isto é, contra os direitos dos trabalhadores, agora em 2016 como em 1954 e em 1964. A iminência do golpe de Estado – operado a partir das entranhas do Estado, por setores do Ministério Público Federal, da Polícia Federal e do Judiciário, mas articulado de fora pelas forças de sempre (o monopólio ideológico dos meios de comunicação liderados pelos sistema Globo) ensejou às esquerdas, como mecanismo de defesa que logo se transformou em instrumento de luta, a unidade na ação, de que resultou a Frente Brasil Popular, e, com ela, a unificação dos movimentos populares e as grandes mobilizações.
A consigna ‘Não vai ter golpe, vai ter luta‘, que em outras palavras significa a retomada, pela esquerda, da questão democrática, e a decisão pelo enfrentamento, tanto funcionou como discurso aglutinador quanto orientou a ação. Nas ruas as massas redescobriram sua força, e não pretendem refluir. O movimento social, assim, está na fronteira de um salto de qualidade, que lhe permitirá caminhar da defesa da legalidade e da democracia para o pleito e construção de um novo tipo de sociedade. Golpeadas pela farsa do impeachment, as esquerdas se preparam para unir a luta parlamentar à luta nas ruas.
As emoções desses dias parecem enunciar embates de duração, intensidade e profundidade impossíveis de prever.
Roberto Amaral
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Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia
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