LIBERTAÇÃO DOS ESCRAVOS À BRASILEIRA
Gilberto Sant´Anna
Certa vez um professor se surpreendeu com uma pergunta pouco comum, referente aos africanos trazidos para cá sob o regime de escravidão. O aluno indagou acerca das diferenças porventura existentes entre o “13 de maio” e o “20 de novembro ”. Enfim, ambas as efemérides repetem a temática do resgate social.
Quem distingue a água do vinho não encontra dificuldade na resposta. A Lei Áurea da princesa Isabel reflete uma data chapa branca, assinada a contragosto, mercê do impasse político e econômico ocorrido ao tempo do Império.
Pois bem, “ A presença africana na América portuguesa se estabeleceu de forma maciça na medida em que esta se tornou imprescindível para a administração colonial e por conta das atividades que geravam lucro para a Real Fazenda – escravos africanos eram mercadorias tributadas na alfândega de Sua Majestade. O resgate justificado pela cristianização e pela expansão da civilização continuou ocorrendo ao logo dos séculos, menos como uma crença e mais como um recurso para estabelecimento da colonização e da permanência das lavouras” (Joice Santos, Revista de História, Biblioteca Nacional, ano 10, nº 108, setembro 2014).
Vai daí, durante quatro séculos cerca de doze milhões de africanos foram embarcados na costa da África. A Inglaterra detinha a hegemonia do tráfico transatlântico dos cativos. Os altos lucros daí obtidos lhe permitiram financiar a Revolução Industrial . Dentre todos os trazidos para a América 45% desembarcaram no Brasil, em quantidade pois das mais expressivas.
A elite agrária brasileira apoiava a monarquia em troca da manutenção do trabalho escravo. As lavouras, máxime a de café, não podiam prescindir do trabalho braçal, até mesmo depois da chegada dos imigrantes oriundos da Europa e de diversas partes do planeta.
Por outro lado, os comerciantes e mercadores bem sucedidos viajavam para a Inglaterra donde as máquinas constituíam a base do progresso. Trouxeram novo modo de produção para o Brasil. A resistência dos fazendeiros às mudanças se fez imediata. De um lado os renitentes e medievais escravagistas. De outro os capitalistas, que pediam uma nova e adequada relação de trabalho, agora dita livre. Impossível a convivência da fábrica com a senzala.
Claro, além das questões meramente econômicas, havia os que por sensibilidade humanista lutaram com garra pelo fim da escravidão. Era preciso abolir a bárbara e atrasada forma de organização do trabalho. Eram os intelectuais, artistas, literatos, bacharéis, jornalistas, políticos do Brasil e do exterior. O povo saiu às ruas clamando por liberdade ampla e irrestrita aos escravos.
A libertação aconteceu. Analisemos a Lei Áurea de “13 de Maio de 1888. Lacônica, apenas duas linhas, transformadas em artigo primeiro e segundo: “É declarada extinta a escravidão no Brasil.” Para não pairarem dúvidas nos Tribunais revogou-se as disposições em contrário.
Brincadeira de muito mau gosto. Os escravos foram despejados do cativeiro com direito ao abandono à própria sorte. Encontravam-se num continente desconhecido, com cultura, língua, religião e costumes muito diferentes. A República desde 1889 também se manteve imperturbável diante da crise social instalada pela monarquia. Nada se fez. A desgraça se abateu de vez sobre o povo afro- brasileiro.
Ao que se sabe Joaquim Nabuco preparara três anteprojetos legislativos. O primeiro libertava os escravos e ponto final. Os outros dois amparavam e possibilitam a integração dos libertados. Estes dispositivos nunca foram aprovados. Ao contrário se ouviu apenas o esbravejar forte dos fazendeiros reclamando indenização por perdas e danos. O ordenamento jurídico ordinário lhes dava razão e privilégios.
A Lei Áurea em vez de libertar pois decretou a exclusão. Não promoveu a cidadania nem a ascensão social. Não indenizou nem previu ressarcimento às vítimas pelos constrangimentos físicos e morais sofridos, apesar do apelo generalizado das consciências não comprometidas com degradação humana. A comemoração de “13 de Maio” presta-se, pois à celebração de uma formalidade legal, nua e crua, com consequências desastrosas.
Não é o caso do “20 de Novembro” , dia dedicado à consciência e reflexão negra. A data consagra Zumbi , nascido pelos idos de 1655 no quilombo dos Palmares, que organizou a resistência dos negros na capitania de Pernambuco. Lutaram bravamente e foram derrotados depois de muitas investidas das forças portuguesas, apoiadas até por paulistas bandeirantes.
Trata-se de um símbolo da inclusão, da visibilidade positiva e de plena legitimidade. No dizer de Salvador Allende, presidente deposto do Chile “Não basta que todos sejam iguais perante a Lei. É preciso que a Lei seja igual perante todos”.
Como fazer para resgatar o débito social do Estado brasileiro com os submetidos ao regime de escravidão? Os fatos ocorreram faz mais de 120 anos e até agora existe tão somente um recente pedido formal de desculpas oficiais e uma pequena prioridade para acesso às faculdades públicas, através de bolsas e cotas, cuja nota de corte encontra-se pouco abaixo dos demais concorrentes.
A resposta aguarda a manifestação do aluno. A tão desejada reconstrução do Brasil começa com a participação igual e igualitária de todos. É hora da união em defesa da cidadania perdida e das classes populares, apesar dos protestos conservadores que hoje ecoam nas ruas e avenidas do egoísmo.