quinta-feira, 14 de maio de 2015

LIBERTAÇÃO DOS ESCRAVOS À BRASILEIRA

LIBERTAÇÃO DOS ESCRAVOS À BRASILEIRA

Gilberto Sant´Anna

Certa vez um professor  se surpreendeu   com uma pergunta pouco comum,    referente aos   africanos  trazidos para cá  sob o regime de escravidão.   O aluno  indagou acerca das diferenças porventura  existentes  entre o  “13 de maio” e o “20 de novembro ”. Enfim,   ambas as efemérides   repetem a  temática  do resgate  social.

Quem distingue  a água do vinho não  encontra dificuldade na resposta.  A  Lei Áurea  da princesa Isabel    reflete uma data chapa branca, assinada a contragosto, mercê   do impasse  político e econômico  ocorrido ao tempo do  Império.  

Pois bem,  “ A presença africana na América portuguesa se estabeleceu de forma maciça  na medida  em  que esta se  tornou imprescindível para a administração  colonial e por conta das atividades que geravam lucro  para a Real Fazenda – escravos africanos eram  mercadorias tributadas na alfândega  de Sua Majestade. O resgate  justificado pela cristianização  e pela expansão da civilização continuou ocorrendo  ao logo dos séculos, menos como uma crença e mais como um recurso para estabelecimento da colonização e da permanência  das lavouras”  (Joice Santos, Revista de História, Biblioteca Nacional, ano 10, nº 108, setembro 2014).

Vai daí, durante quatro séculos  cerca de  doze milhões de africanos   foram embarcados na costa da África. A Inglaterra detinha a hegemonia do  tráfico transatlântico  dos cativos. Os  altos lucros  daí obtidos  lhe permitiram financiar a Revolução Industrial .  Dentre todos os  trazidos para a América  45%  desembarcaram no Brasil, em quantidade  pois  das mais expressivas.

A elite agrária  brasileira  apoiava a monarquia  em troca  da manutenção do trabalho escravo. As lavouras, máxime a  de café, não podiam prescindir  do   trabalho braçal,   até mesmo depois da chegada dos imigrantes  oriundos da Europa e  de  diversas partes do planeta.

Por outro lado, os comerciantes  e mercadores bem sucedidos  viajavam para a Inglaterra donde as máquinas  constituíam a base  do progresso.  Trouxeram novo modo de produção  para o Brasil.  A resistência    dos fazendeiros  às mudanças  se fez imediata. De um lado os renitentes e medievais  escravagistas. De outro os capitalistas, que  pediam uma nova e adequada  relação de trabalho, agora  dita livre.  Impossível a convivência  da  fábrica  com a senzala.

Claro, além das questões meramente econômicas, havia os que por sensibilidade humanista   lutaram com garra   pelo fim da escravidão. Era preciso abolir  a bárbara e atrasada forma de organização do trabalho. Eram os intelectuais, artistas, literatos, bacharéis, jornalistas, políticos  do Brasil e do exterior. O povo saiu às ruas clamando por  liberdade ampla e  irrestrita  aos escravos.
A libertação aconteceu. Analisemos a Lei Áurea  de “13 de Maio de 1888.  Lacônica, apenas duas linhas, transformadas em artigo primeiro e  segundo: “É declarada extinta a escravidão no Brasil.” Para não pairarem  dúvidas nos Tribunais  revogou-se as disposições  em contrário.

Brincadeira  de muito  mau gosto. Os escravos foram despejados  do cativeiro  com direito  ao abandono à própria sorte. Encontravam-se num continente desconhecido, com cultura, língua, religião  e costumes  muito  diferentes.  A República desde 1889 também se manteve imperturbável diante da crise  social instalada pela  monarquia. Nada se fez.   A desgraça se abateu de vez  sobre o povo afro- brasileiro.

Ao que se sabe Joaquim Nabuco  preparara três anteprojetos legislativos.  O primeiro  libertava  os escravos  e ponto final. Os  outros dois  amparavam e possibilitam a  integração dos libertados. Estes dispositivos nunca foram aprovados.  Ao contrário  se ouviu  apenas o esbravejar  forte dos fazendeiros reclamando  indenização por perdas e danos. O ordenamento jurídico ordinário lhes dava razão e privilégios.

A Lei Áurea  em vez de libertar pois  decretou  a exclusão. Não promoveu a cidadania nem a ascensão social.  Não indenizou nem previu ressarcimento às vítimas  pelos constrangimentos  físicos e morais sofridos, apesar do apelo generalizado  das consciências não comprometidas com degradação  humana.   A comemoração de “13 de Maio”   presta-se,  pois  à celebração de uma  formalidade  legal,  nua e crua, com consequências desastrosas.

Não é o caso do  “20 de Novembro” , dia dedicado à consciência e reflexão negra. A data consagra Zumbi , nascido pelos idos de 1655 no quilombo dos Palmares,   que organizou a  resistência dos  negros na  capitania de Pernambuco. Lutaram   bravamente e foram derrotados  depois de muitas investidas  das forças portuguesas, apoiadas até por paulistas bandeirantes.
Trata-se de um símbolo  da inclusão, da visibilidade positiva e de plena  legitimidade. No dizer de Salvador Allende, presidente deposto do Chile “Não basta que todos sejam iguais perante a Lei. É preciso que a Lei seja igual perante todos”. 

Como fazer para resgatar  o débito social do Estado brasileiro com os submetidos  ao  regime de escravidão?   Os fatos ocorreram faz mais de 120 anos e até agora   existe   tão somente um  recente pedido formal de desculpas oficiais   e uma pequena prioridade para acesso às faculdades públicas, através de  bolsas e  cotas, cuja nota de corte  encontra-se pouco abaixo  dos demais concorrentes.

A resposta  aguarda a manifestação do aluno. A  tão desejada reconstrução  do Brasil começa com a participação igual e igualitária  de  todos. É hora  da união  em defesa da cidadania perdida e das classes populares,  apesar dos protestos conservadores  que hoje ecoam  nas ruas  e avenidas do egoísmo.